Newsletter #11: Limiar Anaeróbio, suas Tretas e a Ciência por Trás do Equívoco

28/01/2025

A Descoberta de Wasserman e o Início da Polêmica


            Em dezembro de 1964, foi publicado um dos artigos mais citados na medicina e, principalmente, na fisiologia do exercício. Seu autor, Karlman Wasserman, tornou-se um dos cientistas mais influentes da área, sendo considerado o pai da fisiologia do exercício moderna. O estudo, intitulado “Detecting the Threshold of Anaerobic Metabolism in Cardiac Patients During Exercise”, foi publicado na American Journal of Cardiology e mudou irreversivelmente a forma como interpretamos o desempenho físico em testes incrementais.


              A partir daí, surgiram diversas interpretações sobre um único conceito, disputas por notoriedade, mal-entendidos que persistem até hoje e uma infinidade de nomenclaturas diferentes para descrever o mesmo fenômeno. Estamos falando do limiar de lactato, sua relação com a determinação da intensidade do exercício e a compreensão da fadiga em esportes de endurance. Quer acompanhar essa história? Pega um café, porque a conversa é longa, mas vale a pena!


Antes de Wasserman: O Que Já Sabíamos?

                Até os anos 1960, já se sabia que, em intensidades elevadas de exercício, o corpo acumulava lactato no sangue. Pesquisas anteriores, como as de Hill e Lupton na década de 1920, sugeriam que a produção excessiva de ácido lático era indicativa de falta de oxigênio no músculo. No entanto, ainda não existia o conceito de limiares metabólicos, e não se compreendia que a produção e a remoção de lactato variavam com a intensidade do exercício.

         Com o avanço da tecnologia nos anos 1960, incluindo o desenvolvimento dos primeiros analisadores de CO₂(originalmente criados para submarinos e caças na Segunda Guerra Mundial) e o surgimento dos primeiros computadores para análise de dados fisiológicos, a pesquisa na área da fisiologia foi revolucionada. Em 1964, Wasserman introduziu pela primeira vez o termo “limiar anaeróbio”, em um estudo com pacientes cardiopatas. Ele observou que, durante um teste de carga incremental, ocorria:
• Aumento do quociente respiratório (indicando maior consumo de glicose);

• Redução do bicarbonato plasmático (HCO₃⁻), sugerindo acidose metabólica.


                   Com base nesses achados, os autores concluíram que o aumento da ventilação e as alterações metabólicas observadas eram consequência da hipóxia muscular e que, a partir de um determinado ponto, o metabolismo passaria a depender predominantemente de vias anaeróbias. Foi nessa época que surgiu o termo “acidose lática”, amplamente utilizado por décadas, mas que hoje é considerado inadequado. Atualmente, entende-se que o correto é “acidose metabólica”, já que a queda do pH ocorre devido ao acúmulo de íons H⁺, e não diretamente pelo lactato em si.


                 A hipótese original de Wasserman sobre o limiar anaeróbio foi aceita rapidamente, mas a história não parou por aí. Em 1973, Beaver, Wasserman e Whipp deram um grande salto ao mostrar que dava para identificar esse ponto de transição metabólica sem precisar coletar sangue para medir lactato! Como? Observando o comportamento dos gases respiratórios. Eles perceberam que, à medida que o exercício ficava mais intenso, a ventilação (V̇E) começava a aumentar de forma desproporcional em relação ao consumo de O₂ (V̇O₂), junto com uma elevação do CO₂ expirado (V̇CO₂) e do quociente respiratório (R). E adivinha? Esse aumento da ventilação coincidia com o ponto em que o lactato no sangue começava a subir progressivamente. Esse achado mudou o jogo, consolidando a relação entre o limiar ventilatório e o limiar de lactato. A partir daí, os testes de ergoespirometria passaram a ser usados para estimar os limiares de forma não invasiva, tornando muito mais fácil entender e prescrever exercícios sem precisar de medições diretas de lactato.

O Poder de Wasserman e a Consolidação do Equívoco


                  As informações a seguir foram retiradas do artigo “A Personal Biography of a Physiological Misnomer: The Anaerobic Threshold” (Uma Biografia Pessoal de um Equívoco Fisiológico: O Limiar Anaeróbio), de James Hagberg, publicado em 2021 no International Journal of Sports Medicine, uma das revistas mais importantes da fisiologia do exercício. Nesse texto, Hagberg revisa a história científica do limiar anaeróbio e discute a influência de Karlman Wasserman na consolidação dessa ideia, mesmo diante de evidências conflitantes.


                  Wasserman, com mais de 360 publicações e uma extensa rede de colaborações científicas, construiu uma narrativa convincente sobre o limiar anaeróbio, relacionando o aumento da ventilação à acidose metabólica causada pelo acúmulo de lactato no sangue. No entanto, poucos anos após a publicação de 1973, Hagberg e colaboradores observaram que pacientes com Doença de McArdle, uma condição genética na qual não há a enzima necessária para degradar glicogênio, e por este motivo, não produzem lactato durante o exercício. Ainda assim, sem produção de lactato, o comportamento da ventilação pulmonar ocorrem do mesmo jeito em quem produz lactato, sugerindo que outros mecanismos, além da acidose metabólica, explicam essas respostas fisiológicas. Veja as figuras abaixo e observe o comportamento do lactato e da ventilação num teste progressivo máximo. 


                 Ao ver os resultados em pacientes com Doença de McArdle, Wasserman não aceitou bem a ideia de que sua teoria poderia estar errada. Ele argumentou que o estudo não havia sido bem conduzido e que os dados não eram suficientes para refutar a relação entre acidose metabólica e aumento da ventilação. No entanto, os achados mostravam algo difícil de ignorar: mesmo sem produzir lactato, esses pacientes apresentavam os mesmos padrões ventilatórios de indivíduos saudáveis. Se a ventilação fosse impulsionada apenas pela acidose causada pelo acúmulo de lactato, isso não deveria acontecer. Mas acontecia. Esse foi um dos primeiros indícios de que o limiar ventilatório não era explicado apenas pela hipóxia muscular e acidose metabólica, mas sim por mecanismos mais complexos que só seriam melhor compreendidos anos depois.


O Limiar Anaeróbio Sob a Ótica Moderna


                Nos últimos anos, avanços na fisiologia do exercício reformularam nossa compreensão sobre os limiares metabólicos, demonstrando que a explicação original de Wasserman, baseada exclusivamente na acidose metabólica e na hipóxia muscular, é insuficiente e imprecisa. Hoje, sabemos que o limiar anaeróbio não representa uma transição abrupta do metabolismo aeróbio para o anaeróbio, mas sim um ponto de ajuste dinâmico, no qual ocorre um aumento gradativo da utilziação dos carboidratos (glicogênio muscular) e, consequentemente maior contribuição anaeróbia e aumento exponencial da concentração de Lactato no sangue. 


                 A teoria do “Lactate Shuttle”, proposta por George Brooks, revolucionou essa visão ao demonstrar que o lactato não é um simples subproduto do metabolismo anaeróbio, mas sim um intermediário energético essencial. Durante o exercício, o lactato é produzido continuamente, independentemente da disponibilidade de oxigênio, sendo transportado entre tecidos por meio dos transportadores MCTs (Monocarboxylate Transporters). O lactato é então metabolizado pelo fígado, coração e fibras musculares oxidativas, se tornando um fonte de glicose para o exercício através da gliconegênese. O lactato está longe de ser um lixo metabólico!


                 Portanto, o aumento da concentração de lactato em intensidades elevadas não ocorre devido à falta de oxigênio, mas porque sua taxa de produção excede sua taxa de remoção. Além disso, a remoção do lactato pode ser prejudicada pelo aumento das catecolaminas circulantes, que estimulam a glicólise e reduzem a captação do lactato pelo músculo esquelético, resultando em seu acúmulo no sangue (Stanley et al., 1986; Messonnier et al., 2013).

Então, ainda vale a pena identificar os limiares de lactato e ventilatórios?


Sim! Apesar da discordância sobre seus mecanismos, a determinação desses limiares é essencial para uma prescrição de exercício mais assertiva e segura, tanto no esporte quanto no ambiente clínico.

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Chico


Referências desta newsletter:

  • Wasserman, K., & McIlroy, M. B. (1964). Detecting the threshold of anaerobic metabolism in cardiac patients during exercise. American Journal of Cardiology.
  • Beaver, W. L., Wasserman, K., & Whipp, B. J. (1973). Anaerobic threshold and respiratory gas exchange during exercise. Journal of Applied Physiology.
  • Hagberg, J. (2021). A Personal Biography of a Physiological Misnomer: The Anaerobic Threshold. International Journal of Sports Medicine.
  • Brooks, G. A. (2018). The lactate shuttle and the “anaerobic threshold”. Journal of Physiology.
  • Poole, D. C., & Jones, A. M. (2020). Anaerobic threshold: 50+ years of controversy. Journal of Physiology.
  • Ferguson, B. S., Rogatzki, M. J., Goodwin, M. L., Kane, D. A., Rightmire, Z., & Gladden, L. B. (2018). Lactate metabolism: Historical context, prior misinterpretations, and current understanding. European Journal of Applied Physiology.