Newsletter #18 – O Papel da NASA na Descoberta dos Riscos do Repouso no Leito
Guerra Fria e a Fisiologia do Exercício
Nos anos 60, o mundo vivia o auge da Guerra Fria, e a corrida espacial para levar o homem à Lua era o grande foco dos EUA e da URSS. Nesse período, as descobertas científicas avançavam a todo vapor, especialmente na física e engenharia, impulsionadas pelo desenvolvimento de foguetes e novos materiais necessários para romper a atmosfera terrestre e pousar na Lua. Paralelamente, na área da saúde, a incidência de infarto do miocárdio estava em ascensão, e a criação das UTIs coronarianas nos anos 50 marcou a primeira grande intervenção da cardiologia capaz de reduzir a mortalidade hospitalar de pacientes infartados.
Com os planos de enviar humanos ao espaço, surgiram os primeiros questionamentos sobre os efeitos da gravidade zero na saúde dos astronautas. Em 1966, a NASA encomendou um estudo que influenciou para sempre a fisiologia do exercício, a rotina dos astronautas e a reabilitação cardíaca. Nesta edição da newsletter da CentralFlix, vamos falar sobre o Dallas Bed Rest and Training Study e como esse experimento alarmou a comunidade médica ao revelar os impactos devastadores do repouso prolongado no leito, prescritos nas UTI's cardíacas de todo o mundo.
Quando Ficar na Cama se Tornou um Experimento Científico
Em 1966, três anos antes da missão Apollo 11 pousar na Lua, a NASA encomendou um estudo à Universidade do Texas Southwestern Medical School, em Dallas, para avaliar os prováveis efeitos da gravidade zero na saúde dos astronautas. Sob a liderança do Dr. Bengt Saltin e sua equipe, foram recrutados cinco homens jovens e saudáveis, com cerca de 20 anos, que aceitaram o desafio de passar três semanas em repouso absoluto no leito. (Convenhamos, só homens e jovens topariam algo assim!).
Durante as férias de verão, por 21 dias, eles ficaram restritos ao leito, passavam o tempo assistindo TV, lendo, e conversando entre si e comer. A única exceção foi um breve momento diário para tomar banho, quando puderam suportar seu próprio peso por alguns instantes. Abaixo, uma foto original do estudo.

O objetivo do estudo era entender como o repouso prolongado afetava o corpo humano e se um programa de treinamento físico poderia reverter essas alterações. Pode parecer estranho hoje, mas, na época, ainda não havia um consenso claro sobre os efeitos negativos da inatividade e o poder do exercício na reabilitação.
Para responder a essas questões, os cinco voluntários passaram por uma bateria completa de testes fisiológicos, incluindo ergoespirometria – um exame bastante restrito na época – com medição direta do VO₂ máximo, além de avaliações da ventilação pulmonar, frequência cardíaca, volume sistólico e níveis de hemoglobina, tanto em repouso quanto durante o esforço. Após as três semanas de restrição ao leito, os participantes foram reavaliados e, em seguida, iniciaram um programa intenso de reabilitação por oito semanas. Ao final, passaram por uma nova bateria de testes para analisar o impacto do exercício na recuperação da capacidade funcional.
Efeitos da "gravidade zero"na função cardiovascular e respiratória
Após as três semanas de repouso, os cinco corajosos voluntários foram reavaliados, e os resultados foram tão surpreendentes que o estudo foi publicado em forma de suplemento e mereceu um editorial especial na edição (38) da Circulation em que foi publicado. Os efeitos negativos do repouso foram evidentes em vários sistemas fisiológicos:
🔻 Sistema respiratório: redução de 15% na ventilação voluntária máxima
🔻 Sistema hematológico: queda de 5% nos níveis de hemoglobina🔻 Sistema cardiovascular: redução de 25% no débito cardíaco máximo
🔻 Aptidão aeróbia: redução de 27% no VO2 máximo
Note que houve uma redução de mais de 1% por dia da reserva cardiovascular e capacidade funcional em pessoas jovens e saudáveis. Atualmente os astronautas realizam 2,5horas de exercício diários para atenuar esses efeitos negativos.

Oito Semanas de Exercício para Reverter Três Semanas de Declínio
Após três semanas de imobilidade, os voluntários iniciaram um programa de treinamento aeróbico de oito semanas, baseado em caminhada, corrida e ciclismo, com progressão gradual de volume e intensidade. O objetivo era restaurar a capacidade cardiovascular sem sobrecarga excessiva. Inicialmente, as sessões eram realizadas em baixa intensidade e curta duração, com aumento semanal de aproximadamente 5 a 10% na carga total de exercício. A prescrição foi ajustada para que os voluntários atingissem 75% da frequência cardíaca máxima, garantindo estímulo suficiente para promover adaptações cardiovasculares. Além disso, foi utilizada monitorização frequente da frequência cardíaca para individualizar a progressão do treinamento e evitar riscos.
Ao final das oito semanas, todas as variáveis comprometidas pelo repouso não só foram restauradas como superaram os valores anteriores ao repouso. O débito cardíaco máximo foi completamente recuperado, impulsionado por um aumento significativo no volume sistólico, enquanto o VO₂ máximo apresentou um aumento médio de 18% em relação ao pré-repouso. A ventilação voluntária máxima e os níveis de hemoglobina também retornaram aos valores basais, restabelecendo a capacidade de transporte e utilização do oxigênio. Esses achados reforçaram a eficácia do treinamento aeróbico na recuperação da função cardiovascular e respiratória, consolidando sua importância na reabilitação física.

Comparação das variáveis fisiológicas antes da restrição leito, após o repouso, a variação percentual e, por fim, os resultados após 8 semanas de reabilitação física.
Os Impactos a Longo Prazo: O Que Aconteceu com os Voluntários Décadas Depois?
Trinta anos após o estudo original, os pesquisadores reavaliaram os cinco voluntários para entender os efeitos do envelhecimento na função cardiovascular. Os resultados foram impressionantes: a perda de capacidade aeróbica ao longo de três décadas foi menor do que a observada nas três semanas de repouso absoluto aos 20 anos. Enquanto o VO₂ máximo havia caído 27% com o repouso no leito, a redução ao longo de 30 anos de envelhecimento foi de apenas 11%. No entanto, após um novo programa de treinamento aeróbico, os voluntários recuperaram totalmente sua capacidade aeróbica, voltando aos valores registrados antes da restrição ao leito. Esse achado reforçou uma verdade fundamental: a inatividade causa um declínio fisiológico mais rápido e severo do que o próprio envelhecimento – e o exercício tem o poder de reverter esses danos.
Dez anos depois, no follow-up de 40 anos, os voluntários foram novamente avaliados. Desta vez, o declínio foi mais acentuado: o VO₂ máximo caiu 25% entre os 50 e 60 anos, uma redução muito mais acelerada do que nos 30 anos anteriores. Esse período foi marcado pelo surgimento de comorbidades, como hipertensão e fibrilação atrial, além do impacto combinado da idade e do estilo de vida na função cardiovascular. A principal mudança foi que a perda da capacidade aeróbica não se deu mais apenas pela queda do débito cardíaco, mas também pela redução na extração de oxigênio pelos músculos, sugerindo um impacto progressivo da sarcopenia e do descondicionamento periférico. Por isso, um programa de reabilitação em idosos NÃO DEVE INCLUIR APENAS EXERCÍCIO AERÓBIO!
Cinco décadas após o estudo original, os voluntários foram avaliados novamente, no que provavelmente é o acompanhamento mais duradouro da ciência sobre os efeitos do descondicionamento e do exercício. Agora, a perda de VO₂ máximo atingia 27% em relação à última avaliação, e o declínio acelerado após os 60 anos demonstrava que envelhecimento e inatividade atuam juntos, levando a uma deterioração mais severa da capacidade funcional.
Um achado crítico foi que, aos 70 anos, os valores de VO₂ máximo dos voluntários eram semelhantes aos observados após três semanas de repouso no leito aos 20 anos. Ou seja, o impacto da inatividade foi tão devastador quanto 40 anos de envelhecimento. Esse estudo consolidou uma das maiores lições da fisiologia do exercício: a perda funcional pode ser retardada, mas a inatividade acelera dramaticamente o processo de declínio.
Se você trabalha com pacientes internados, com certeza já viu a prescrição de "repouso no leito". Quando perceber isso sem um motivo realmente justificável, encaminhe esses artigos e esse texto para o prescritor – porque, como a ciência já provou, não há nada mais deletério do que a inatividade.
Aprofunde-se na Fisiologia do Exercício!
Os achados do Dallas Bed Rest and Training Study mudaram para sempre a forma como entendemos os efeitos do repouso, do exercício e do envelhecimento na função cardiovascular. Se você quer dominar esses conceitos e aplicá-los na prática clínica, não perca a Semana da Fisiologia do Exercício!
📅 O que você vai aprender?
✔️ Qual a importância da Fisiologia Clínica do Exercício para profissionais da reabilitação?
✔️ Bioenergética aplicada à reabilitação cardiovascular e respiratória
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Até a próxima,
Francisco Oliveira
Divulgador Científico - Central da Reabilitação
Referências:
1. https://www.howandwhy.com/being-human/from-dallas-to-the-great-sitdown
2. 30 anos após o Dallas Study: McGuire DK, Levine BD, Williamson JW, et al. A 30-Year Follow-Up of the Dallas Bed Rest and Training Study: II. Effect of Age on Cardiovascular Adaptation to Exercise Training. Circulation. 2001;104:1358-1366 .
3. 40 anos após o Dallas Study: McGavock JM, Hastings JL, Snell PG, et al. A Forty-Year Follow-Up of the Dallas Bed Rest and Training Study: The Effect of Age on the Cardiovascular Response to Exercise in Men. J Gerontol A Biol Sci Med Sci. 2009;64(2):293-299 .
4. 50 anos após o Dallas Study: Mitchell JH, Levine BD, McGuire DK. The Dallas Bed Rest and Training Study Revisited After 50 Years. Circulation. 2019;140:1293-1295 .
5. Estudo original de 1968: Saltin B, Blomqvist G, Mitchell JH, et al. Response to Exercise After Bed Rest and After Training. Circulation. 1968;38(Suppl VII):VII1-VII78 .