Newsletter#19- Titina e Função Cardíaca: a Engenharia Fina do Sarcômero
A maior de todas
O músculo humano é um universo de proteínas que pouco conhecemos. Por algum motivo algumas proteínas ficaram mais famosas do que outras, como Actina, Miosina e o complexo troponina-tropomiosina. Essas 4 são o quarteto fantástico das proteínas miofibrilares. Entretanto, a maior de todas as proteínas dos mamíferos encontra-se dentro do sarcômero, ela tem funções imprescindíveis para função cardíaca e muscular esquelética e talvez você nunca tenha ouvido falar dela, ou apenas visto por cima no seu processo de formação. Essa proteína foi nomeada inicialmente como CONECTINA, mas hoje é mais conhecida como TITINA e seu "nome" químico possui cerca de 190 mil letras e levaria 3,5 horas para lê-lo.
A existência da titina, embora invisível nas primeiras micrografias eletrônicas, foi sugerida ainda em 1954, quando Huxley e Hanson observaram que os sarcômeros permaneciam coesos (não se desfaziam) mesmo após a extração da actina e da miosina. Só décadas depois, avanços bioquímicos e genéticos confirmaram que a TITINA é uma única molécula contínua que se estende da linha Z até a linha M, com uma porção elástica na banda I e uma região mais rígida na banda A — onde se liga diretamente à MIOSINA. Hoje, ela é reconhecida como a terceira proteína mais abundante do músculo estriado, atrás apenas da miosina e da actina, compondo até 15% do total de proteínas no músculo esquelético e sendo essencial para a arquitetura e a mecânica sarcomérica.
Nesta edição da Newsletter da Centralflix vamos abordar sobre o papel da Titina na fisiologia muscular, e o seu papel na função cardíaca e nas doenças cardiovasculares.

Um representação esquemática da Titina. Sempre me pergunto como descobrem essas coisas (1).
Relação entre estiramento muscular e aumento da capacidade de gerar força
Quando falamos de fisiologia cardíaca e da capacidade de relaxamento do miocárdio, é comum ver o coração comparado a uma cama elástica. Essa analogia, embora popular, é incorreta — como abordei na primeira edição da nossa newsletter (LEIA AQUI). A confusão provavelmente nasce da lei de Frank-Starling, que afirma que, dentro de limites fisiológicos, quanto maior o retorno venoso, maior será o volume sistólico. Em outras palavras: quanto mais cheio o coração, mais forte ele contrai (aumento do inotropismo com o aumento da pré-carga).
Mas por que, então, essa comparação com a cama elástica está errada? Porque, diferente do pulmão ou de uma mola, o coração não acumula energia elástica durante o relaxamento. Um coração normal apresenta alta complacência e, mesmo ao final da diástole, a pressão intraventricular permanece próxima de zero. Complicado, né? Ele se alonga e contrai com mais força, mas sem aumento de pressão nem com acúmulo de energia potencial elástica. Essa maior eficiência contrátil é mediada pela ação da Titina
Pense agora nos músculos esqueléticos. O que você faz para saltar mais alto? Antes de saltar, realiza um pré-agachamento para ganhar "impulso". E para chutar com mais força? Você estende o quadril antes de executar a flexão. Esse pré-alongamento muscular aumenta a eficiência da contração — e no coração, acontece algo semelhante: o alongamento do cardiomiócito na diástole favorece uma contração mais vigorosa na sístole.Mas afinal, como a Titina participa disso tudo? Vamos entender melhor como ela atua tanto no coração quanto nos músculos esqueléticos.
Papel da titina na função cardiovascular e insuficiência cardíaca
A titina não é apenas um elemento passivo que contribui para a elasticidade do sarcômero — ela também exerce um papel ativo na regulação da força contrátil. Quando o sarcômero é encurtado, a titina gera uma força de restauraçãoque atua na direção oposta à da tensão passiva, auxiliando no retorno rápido ao comprimento de repouso. Já durante o estiramento, ela aumenta a sensibilidade dos miofilamentos ao cálcio. Esse mecanismo é essencial para o efeito Frank-Starling, permitindo que, conforme o sarcômero se alonga, o coração responda com contrações mais vigorosas mesmo sem aumento de cálcio intracelular.
Além disso, a titina atua como um modulador estrutural da formação de pontes cruzadas entre actina e miosina. Sua posição estratégica no filamento espesso, especialmente na região da banda A, permite que ela ajuste a geometria e o alinhamento dos filamentos contráteis de acordo com o comprimento do sarcômero. Quando o músculo é estirado, a titina favorece o acoplamento entre actina e miosina, aumentando a formação de pontes cruzadas e, consequentemente, a força gerada. Em contrapartida, quando o sarcômero é excessivamente encurtado, a titina pode inibir esse acoplamento, evitando a formação ineficiente de força. Dessa forma, a titina atua como uma verdadeira reguladora mecano-dependente da eficiência contrátil.
No coração humano, as isoformas N2B (mais rígida) e N2BA (mais complacente) coexistem em proporções variáveis, ajustando a complacência ventricular de forma dinâmica. Enquanto a N2BA favorece um ventrículo mais distensível, a N2B fornece maior força de restauração e velocidade de relaxamento. A proporção entre essas isoformas pode mudar em resposta a sobrecargas crônicas, como ocorre em diferentes formas de insuficiência cardíaca.

Nessa imagem podemos observar que a isoforma N2B é mais rígida do que a N2BA, e que a fosforilação (associada à maior disponibilidade de energia) torna a titina menos rígida, enquanto a maior disponibilidade de cálcio a torna mais rígida.
Em pacientes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP), por exemplo, há uma predominância da isoforma N2B e um estado de hipofosforilação dessa proteína, o que leva a maior rigidez miocárdica. Por outro lado, em pacientes com cardiomiopatia dilatada, observa-se frequentemente uma substituição da N2B por N2BA, como tentativa de compensar o aumento da rigidez da matriz extracelular. Em ambos os cenários, o desequilíbrio da titina contribui para o prejuízo da função ventricular.
Exercício físico e modulação da rigidez passiva pela Titina
A ciência já demonstrou, tanto em modelos animais quanto humanos, que a rigidez passiva do ventrículo esquerdo, determinada em grande parte pela titina, está inversamente relacionada à tolerância ao exercício. Quanto mais rígido o ventrículo, menor a capacidade de aumentar o volume sistólico durante o esforço — um fator limitante para o débito cardíaco. Pacientes com disfunção diastólica ou insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada (ICFEP)frequentemente apresentam titina menos fosforilada e, por consequência, maior rigidez passiva, o que compromete o desempenho durante o esforço, já que a redução do enchimento dificulta a ejeção. A correlação é clara: quanto mais rígido o ventrículo, menor o VO₂máx.

Relação inversa entre a capacidade funcional máxima com a rigidez do ventrículo em pacientes com IC. Nesta imagem que pessoas com maior rigidez tendem a ter menor capacidade funcional. imagem retirado do artigo Lalande e cols (2).
Estudos com animais mostraram que o treinamento aeróbio de moderada intensidade pode reduzir a rigidez passiva do miocárdio, principalmente por meio do aumento da fosforilação da titina — especialmente nas regiões elásticas como N2B e PEVK. Em outras palavras, o exercício modula os sinais moleculares que regulam a elasticidade da titina, facilitando o enchimento ventricular e melhorando a performance física. Além da fosforilação, há evidências de que o treinamento pode alterar a proporção das isoformas da titina (N2BA:N2B), favorecendo as formas mais complacentes. Modelos com manipulação genética da titina, via RBM20, demonstraram que o aumento da isoforma N2BA está associado a menor rigidez e maior tolerância ao exercício, o que reforça o potencial terapêutico dessa via.
Apesar dos achados experimentais serem animadores, ainda há carência de evidências em humanos quanto ao real impacto do exercício sobre a rigidez cardíaca — especialmente em indivíduos com rigidez acentuadamente elevada. Ensaios clínicos em pacientes com ICFEP, por exemplo, não demonstraram melhora significativa da capacidade de relaxamento. E por razões éticas e técnicas, não é viável realizar biópsias miocárdicas em larga escala para estudar diretamente o comportamento da titina nesses pacientes. Ainda precisamos de estudos mais robustos e específicospara compreender como a reabilitação cardiovascular pode influenciar esse componente central da função diastólica.
Como este texto não é um artigo científico, me sinto à vontade para compartilhar uma opinião pessoal fundamentada na minha prática e na fisiologia. Acredito que a melhor estratégia para reduzir a rigidez cardíaca — quando possível — passa por um investimento em volume de treino em intensidades próximas ao primeiro limiar ventilatório. Em atletas, sabemos que longas horas de treinamento nessa zona promovem dilatação ventricular e maior eficiência na ejeção. Mas é importante reforçar: em pacientes com ICFEP, esse efeito ainda não foi comprovado. Por ora, seguimos com boas hipóteses e muitos pontos de interrogação.
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Até lá,
Francisco Oliveira
Divulgador científico da Central da Reabilitação
Referências
1. Granzier HL, Labeit S. Discovery of titin and its role in heart function and disease. Circ Res. 2025;136(1):135–157. doi:10.1161/CIRCRESAHA.124.323051.
2. Lalande S, Mueller PJ, Chung CS. The link between exercise and titin passive stiffness. Exp Physiol. 2017;102(9):1055–1066. doi:10.1113/EP086275.
3. Linke WA. Stretching the story of titin and muscle function. J Biomech. 2023;152:111553. doi:10.1016/j.jbiomech.2023.111553.
4. LeWinter MM, Granzier HL. Cardiac titin and heart disease. J Cardiovasc Pharmacol. 2014;63(3):207–212. doi:10.1097/FJC.0000000000000007.
5. Pinto AR, Conceição G, Leite-Moreira AF. O papel da titina na modulação da função ventricular: implicações para a fisiopatologia e tratamento da insuficiência cardíaca. Rev Port Cardiol. 2023;42(1):31–44. doi:10.1016/j.repc.2022.04.011